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quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Sonhos, estrada, árvores, cemitério e memórias

Eu sonho com meus entes queridos e muitas passagens da minha infância. Tem noites que é uma mistura doida. De gente de agora e de outrora. Diz meu marido que eu caço assunto até sonhando. Digamos que sim. Teve uma época que eu tinha um sonho recorrente, de uma estrada que lembro bem, com duas árvores frondosas, uma em cada lado que se juntavam no meio formando uma ponte verde. Um oásis no meio da paisagem em tempos de seca. Quanta fortaleza as duas árvores emanavam. Depois de passar por essa ponte, caminhava mais um pouco no chão de terra empoeirado e chegava ao portão do cemitério. Parava um instante antes de entrar, olhava pela fresta os túmulos com suas cruzes e santos e abria o portão de ferro. Lembro nitidamente do rangido do portão tomado pela ferrugem. Ao avançar um passo a brancura invadia meu sonho e eu despertava ofegante. E ao acordar vinha a imagem de vovó Iaiá, minha bisavó. Sempre tive a impressão de que é nesse cemitério que ela foi enterrada. Fico imaginando o que tem além da brancura que não consigo acessar. Que entrada é essa que me faz despertar? Em um desses cantos do sertão que guardo na memória. Ainda hei de descobrir essa chave.


A imagem que escolhi é um contraste ao relato da estrada na seca. Essa retrata uma das estradas que leva a Lagoa do Barro, lugar de minha infância, no período da chuva. O crédito da imagem é da página de memórias de Lagoa do Barro, um excelente museu histórico com muitas fotos, histórias e lembranças. Projeto que admiro de Geonaldes Elhemberg. Parabéns pelo registro.

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

O doce, o milho, o pirão e a saudade

Em uma das casas de madrinha tinha um balcão que vendia doces. Ah o doce de leite era desses que posso chamar de manjar das deusas.  O cheio de caroços que aqui se chama de ambrosia e o doce de leite em barras. Era uma briga pra rapar o cororó da panela. Nem espera esfriar, vai dar dor de barriga, dizia madrinha! Cada um com uma colher pegava a raspa quente, queimando a língua e deliciando as lombrigas. Depois eu ficava espiando os potes de doces e as barrinhas no balcão envidraçado com gosto de quero mais. E pensava firme: aqueles são pros fregueses para ajudar pagar as contas da madrinha.

Outra coisa que comia até doer a barriga é o milho assado. Gente o milho daqui é muito diferente. É aguado. O do sertão tem um gosto marcante. Assado na brasa do fogão a lenha ou no buraco do chão que fazíamos na roça, enchia de graveto seco e tacava fogo e coloca os milhos pra assar. Já colhíamos do pé direto pra brasa. O cheiro incendiava no vento da maré.

Ah e o pirão de peixe que madrinha fazia! Pescado lá mesmo no açude ia pra panela com tudo que é tempero. Sempre tinha o coentro. Come minha filha que isso é forte, madrinha dizia enquanto enchia o prato que fumegava, tomando cuidado com os espinhos pra eu não engasgar. O pirão descendo e o suor pingando. Que sustância! Que saudade!


Crédito da imagem: Tudo Gostoso

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

A última ligação, o padrinho, o riso, a bênção

Na praça de Lagoa do Barro tinha uma central telefônica. O único lugar do Distrito que tinha telefone. Lembro das pessoas na calçada esperando a ligação. Tinha gente que marcava hora. Já em Osasco, eu lembro que ia no antigo prédio da Telesp para ligar, sempre aos domingos e nem sempre, quando tinha dinheiro para comprar as fichas que iam caindo enquanto as palavras eram ditas e ouvidas. As vezes acabava a última ficha sem ter tempo para dizer tchau ou benção. E eu dizia mesmo sabendo que a ligação já tinha caído.

Uma das minhas memórias preciosas, que segue ecoando em meu coração, é o som da gargalhada de padrinho Chico Cordeiro em nossa última ligação. Eu tinha mandado uma carta com foto da Bruna para ele conhecer a bisneta. Depois da bênção padrinho, Deus te abençoe. Perguntei da madrinha, mandei lembranças para tios e tias e ele disse: “recebi foto de Bruna”. Eu perguntei: e que tal padrinho, bonita né? Ele risonho respondeu: “Linda igual o bisavô, galega dos olhos de gato”. E juntos caímos na risada.

Ele morreu ligeiro demais, não o vi mais desde que migrei do sertão. A viagem era muito cara. Lembro do dia, já com telefone em casa, que recebi a notícia de seu falecimento no hospital de Recife. E eu senti um vazio daqueles que não se explica. E mergulhei naquele silêncio de dias sem fim. Descia a rua cedo para pegar o ônibus e ir trabalhar em São Paulo e minhas lágrimas aqueciam minha face. Parecia que ouvia sua voz me chamando de “preta” brincando por eu ter puxado a brancura de minha avó. Meu avô era desses que colocava apelido em todo mundo. Com o tempo aprendi que ele continuava vivo, naquele rico humor e graça que observo na sua geração. Ele já me visitou no sonho, por duas vezes, quando eu mais precisei de seu amparo e acordei com o afago do seu abraço.


Meu padrinho-avô Chico Cordeiro

terça-feira, 3 de setembro de 2019

A bodega, o caderno do fiado, o pirulito e as memórias

Minha avó Cotinha tinha uma bodega. Ela teve algumas, em diferentes lugares e casas. Lembro muito da de Trindade, que ficava na esquina. Uma porta lateral a esquerda e a maior de frente. Em uma das paredes tinha a porta que dava pra casa. Em cima do balcão o baleiro era o sonho de consumo das crianças. Pirulito do Zorro. Ah essa iguaria até hoje margeia meus sonhos. Nunca mais encontrei nada parecido depois que vim pra São Paulo. Os guardachuvinhas de chocolate que minhas crianças adoram, e que vende aqui na loja de doces, não chegam nem aos pés daquele pirulito preferido da minha infância. Meu avô e avó se revezavam na bodega. Lembro dele na calçada, sentado na cadeira de balanço, levantando para atender o freguês já com seu riso solto. O humor do meu avô-padrinho Chico é dessas riquezas que a família carrega no DNA. Minha avó sempre acolhedora, ficava de olho nas prateleiras para ver se a bodega estava abastecida e tinha um caderno do fiado com um controle fenomenal. Sua letra marcando o nome e as contas do povo que comprava pra pagar quando recebia a aposentadoria ou a safra. Sim, ela levava uns calotes e dizia: “fazer o que minha filha, ele não tem como pagar?” As vezes passava tempo e quando a pessoa voltava e acertava a conta minha madrinha-avó ficava numa felicidade danada. Tá vendo, gente honesta é assim. E o freguês saia com a compra renovada e a alma abençoada pelas orações de madrinha.
minha madrinha avó, a Dona Cotinha no seu canto da calçada da sua casa

Sertão 2024

Cheguei em São Paulo quando eu tinha 14 anos. Lembro até hoje do frio que senti e do espanto com o céu todo branco acinzentado. Demorei muit...