O mais apressado que ela podia, pelas ruas molhadas, os passos seguiam até a nova escola. O guarda chuva com hastes quebradas a protegia da garoa persistente. Raquel chegava na hora do sinal e sentava na cadeira encostada na janela de vidros com aberturas. O vento gelado entrava na sala. Seu pé esquerdo estava molhado e a friagem percorria sua espinha. Ela encolhia seus pés úmidos embaixo da carteira na tentativa de aquecer e esconder o cheiro estranho das coisas molhadas. Tinha um furo no par esquerdo do único sapato preto que ela tinha. Ainda assim, se concentrava na explicação das aulas.
Fazia um mês que ela fora matriculada na escola. No
intervalo que para ela era recreio, Raquel preferia ficar sozinha na sala.
Ouvia o barulho de todos no pátio enquanto fitava o céu branco da janela. Ela
esperava que a chuva fina parasse no dia seguinte. A professora entrou enquanto
ela ainda estava sozinha e perguntou se estava tudo bem. Raquel sorriu
timidamente e balançou a cabeça afirmativa. O sorriso da professora pareceu
aquecer o seu pé e ela sentiu aquele nó na garganta. Seguiu calada. O sinal
tocou, esperou todos saírem e levantou devagar para seguir para casa de madeira
vermelha. Esse foi seu ritual naquele resto de ano.
Não parava de chover, veio quinta, sexta-feira e sábado o
sol raiou para secar os sapatos e as meias. Ainda não havia geladeira em sua
casa para colocar atrás, como muitas vezes adiante ela faria. O sol gelado da
segunda-feira não aquecia sua caminhada, mas tinha o céu azul. O par de sapatos
estava seco, ainda assim ela usava meias para proteger a pele do asfalto por
causa do furo na sola. Entrou quieta na sala de aula para não ser notada.
Sentou no lugar e observava da janela a claridade bonita daquele dia.
O sinal do intervalo tocou, todos saíram para o pátio,
exceto uma menina que sentava na carteira da frente. Ela levantou e foi em sua
direção com uma sacola e a entregou dizendo: “coloca dentro de sua mochila,
espero que sirva. E aqui está seu lanche.” Raquel recebeu e sua voz não saiu
para agradecer, apenas um largo sorriso. Tem gestos que dizem mais que um enxame
de palavras. Comeu o pão com presunto e queijo. Mais adiante ela saberia se
chamar de misto quente.
Ao sair da escola, quando já ia numa rua distante, fez uma
pausa e sentou na calçada. Abriu a sacola e nela tinha 1 par de tênis e 3 pares
de meias. Ali mesmo experimentou e ficou sentindo a maciez do presente. Guardou
de volta na mochila e seguiu para casa. No dia seguinte colocou as novas meias
e o calçado que seria seu companheiro por muito tempo. Ter os pés aquecidos fez
toda diferença naqueles dias frios do inverno paulista.
Na hora da chamada, apurou os ouvidos para escutar o nome da
menina que lhe presenteou. No recreio escreveu um bilhete de agradecimento e
entregou para Alice na saída. Na quarta-feira daquela semana gélida, houve
entrega de redação e na sexta-feira foi a devolução com as notas. Raquel gelou
quando a professora a chamou para fazer a leitura do seu texto. Ela tremeu,
imaginando como seria ler para toda sala com seu sotaque. Trêmula andou até a
frente da sala que estava quieta, até parecia compreender sua agitação. Pegou o
papel da mão da professora e leu. O parabéns da professora seguiu ressoando.