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sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Furo no pé

O mais apressado que ela podia, pelas ruas molhadas, os passos seguiam até a nova escola. O guarda chuva com hastes quebradas a protegia da garoa persistente. Raquel chegava na hora do sinal e sentava na cadeira encostada na janela de vidros com aberturas. O vento gelado entrava na sala. Seu pé esquerdo estava molhado e a friagem percorria sua espinha. Ela encolhia seus pés úmidos embaixo da carteira na tentativa de aquecer e esconder o cheiro estranho das coisas molhadas. Tinha um furo no par esquerdo do único sapato preto que ela tinha. Ainda assim, se concentrava na explicação das aulas.

Fazia um mês que ela fora matriculada na escola. No intervalo que para ela era recreio, Raquel preferia ficar sozinha na sala. Ouvia o barulho de todos no pátio enquanto fitava o céu branco da janela. Ela esperava que a chuva fina parasse no dia seguinte. A professora entrou enquanto ela ainda estava sozinha e perguntou se estava tudo bem. Raquel sorriu timidamente e balançou a cabeça afirmativa. O sorriso da professora pareceu aquecer o seu pé e ela sentiu aquele nó na garganta. Seguiu calada. O sinal tocou, esperou todos saírem e levantou devagar para seguir para casa de madeira vermelha. Esse foi seu ritual naquele resto de ano.

Não parava de chover, veio quinta, sexta-feira e sábado o sol raiou para secar os sapatos e as meias. Ainda não havia geladeira em sua casa para colocar atrás, como muitas vezes adiante ela faria. O sol gelado da segunda-feira não aquecia sua caminhada, mas tinha o céu azul. O par de sapatos estava seco, ainda assim ela usava meias para proteger a pele do asfalto por causa do furo na sola. Entrou quieta na sala de aula para não ser notada. Sentou no lugar e observava da janela a claridade bonita daquele dia.

O sinal do intervalo tocou, todos saíram para o pátio, exceto uma menina que sentava na carteira da frente. Ela levantou e foi em sua direção com uma sacola e a entregou dizendo: “coloca dentro de sua mochila, espero que sirva. E aqui está seu lanche.” Raquel recebeu e sua voz não saiu para agradecer, apenas um largo sorriso. Tem gestos que dizem mais que um enxame de palavras. Comeu o pão com presunto e queijo. Mais adiante ela saberia se chamar de misto quente.

Ao sair da escola, quando já ia numa rua distante, fez uma pausa e sentou na calçada. Abriu a sacola e nela tinha 1 par de tênis e 3 pares de meias. Ali mesmo experimentou e ficou sentindo a maciez do presente. Guardou de volta na mochila e seguiu para casa. No dia seguinte colocou as novas meias e o calçado que seria seu companheiro por muito tempo. Ter os pés aquecidos fez toda diferença naqueles dias frios do inverno paulista.

Na hora da chamada, apurou os ouvidos para escutar o nome da menina que lhe presenteou. No recreio escreveu um bilhete de agradecimento e entregou para Alice na saída. Na quarta-feira daquela semana gélida, houve entrega de redação e na sexta-feira foi a devolução com as notas. Raquel gelou quando a professora a chamou para fazer a leitura do seu texto. Ela tremeu, imaginando como seria ler para toda sala com seu sotaque. Trêmula andou até a frente da sala que estava quieta, até parecia compreender sua agitação. Pegou o papel da mão da professora e leu. O parabéns da professora seguiu ressoando.

O sapato com furo voltou a ser usado num dia que lavou o tênis e caiu uma chuva de amedrontar. Não deu tempo de recolher do varal. Passado alguns meses Raquel já conversava com duas meninas, Alice e Laura. E também com os professores de história, geografia e português. Perto do final do ano faltou por três dias na escola, todos os moradores tiveram que mudar da favela. A mãe dela, que conseguiu emprego de copeira numa imobiliária, conseguiu alugar uma casa de 2 cômodos, sem fiador. O furo no sapato aumentou e o solado rasgou de vez, mas ainda restava o par de tênis que secava agora dentro da nova morada.

a Menina do tênis preto dessa foto, que ganhou o nome de Raquel nesse pequeno texto, que até poderia ser ficção, mas é real, nesse dia, estava em New York City, andando pelas ruas de Manhattan, na companhia de suas filhas, Isa e Bruna, no outono de 2019. O tênis que ela calçou, foi comprado num brechó, na cidade de OZ, por 2,00 e andaram muito pela Big Apple e outros lugares ...

Um comentário:

  1. São os "percalços" da vida minha irmã. Parabéns pelo texto, como sempre voce tem o poder de nos fazer derrubar lágrimas com palavras tão verdadeiras.

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