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terça-feira, 28 de dezembro de 2021

A memória da estrela cadente de 2021

Uma página em branco? É assim que muitos olham o novo ano? É uma forma inspiradora de ver. Imaginar que podemos começar da primeira letra a escrever uma nova história. Talvez seja possível recomeçar mesmo com a bagagem extensa do ano que se vai e dos outros registrados na memória. Tenho refletido muito sobre o filtro que fazemos dos acontecimentos. Quantos deles seguem marcando meus passos, até nas dores que sinto? Tem também as recordações afetivas que seguem aflorando meu sorriso e me afagam em momentos tristes. Elas são vitais no meu cotidiano. Tem minutos que fecho os olhos para reviver e me sinto abraçada pelas ondas, sensação salgada que escorrem em lágrimas.

Hoje acordei pensando nos meses de 2021, buscando relembrar fatos marcantes desse ano, alguns esquecemos, ficam arquivados e são ativados por conexões, dessas maravilhas dos links neurais. Outros ficam impregnados na alma e seguem ecoando. Então resolvi escrever no meu caderno de gratidão para depois definir qual registrar no blog. Nesse tempo de pandemia, em que as relações presenciais foram raras, a saudade latejou muito. A ausência ensina e me fez selecionar mais ainda o que importa e fortalecer os laços com quem é de casa, num sentido amplo do que essa relação lar representa.

O ano está perto de encerrar, o tempo voa, ouço com frequência. E a idade avança, eu sinto nos fios brancos que pipocam e nas juntas do corpo que dói. Reconhecer a fragilidade e ao mesmo tempo a minha força, me faz entender que preciso priorizar todos os dias a decisão do cuidado comigo. Quanto dos meus desejos foram ficando para trás, ano após ano? É a pergunta que não cala e que me coloca diante de um novo roteiro. Um silêncio repleto de vozes, convocando-me a repensar o enredo desenhado até aqui, para escolher um novo capítulo. Que turbilhão!

E no meio dessa tormenta de reflexões, uma imagem do dia 25/12/21 está iluminando minha visão. Há anos eu não via uma estrela cadente e nessa noite eu a contemplei reluzindo no céu, ligeira e intensa, se esvaindo no espaço celeste e tocando meus sentidos. Não fiz nenhum pedido, apenas fui arrebatada pelo presente, cujo significado está palpitando. Então que venha 2022 e que eu tenha coragem de fazer brilhar o que está fluindo em meu coração.

Crédito da imagem neste link

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Aos meus avós estrelas

Recentemente fui ao velório e enterro e fiquei refletindo sobre esses doloridos momentos de despedida. Nos abraços, no pranto, nas orações, no olhar perdido que anuncia tantos pensamentos do que passou e do que deixamos passar. Não estive ao enterro de nenhum dos avós. A distância no luto. Os que morrem são chamados de finados e eu insisto que continuam vivos naquilo que palpita em nós. A frase de Guimarães Rosa é um bálsamo nessas horas: “as pessoas não morrem, ficam encantadas.” Esse encantamento digo que é o modo que elas seguem vivendo em nós.

Meu vozinho Enoque segue nos meus passos, uns dizem que enxergam sua simplicidade em meus gestos, outros no meu olhar, na maneira como contemplo o horizonte, seja da janela, do mar ou mirando o céu. Nos meus traços tenho minha avó-madrinha. Já ouvi tantas vezes: “nossa como você parece Dona Cotinha.” E que honra essa semelhança que vai além da aparência física. Ah e do meu avô-padrinho Chico Cordeiro tenho o riso solto. Eita como recordo de suas risadas que seguem ecoando em minhas gargalhadas.

No céu da madrugada encontro suas estrelas. Cada um está num canto da constelação e eu os reverencio com uma oração. Até vejo elas piscarem em resposta. Sim, sou dada a essas loucuras de conversar com o celeste.


que toquem os sinos pela memória dos meus avós! Gratidão eterna!

sábado, 28 de agosto de 2021

Carta para Maria avó

Minha estimada vozinha, saudades de sua presença firme. Sim, mesmo diante da fragilidade do seu corpo pela idade avançada, reside na Senhora uma Fortaleza que me inspira. Já disse várias vezes e nunca me cansarei de dizer o quanto me sinto honrada em ser sua neta, em fazer parte de tua linhagem e carregar em meu DNA e sentidos a grandeza do seu sangue e amor. Fecho meus olhos e lembro da minha vozinha em sua casa, assistindo suas orações, sentada no canto da janela da cozinha, no alpendre, no terreiro e deitada em sua cama. O seu apreço pelo seu canto é marcante.

Eu que sempre gostei tanto de rua, até nas minhas andanças hoje vejo que carregamos conosco a nossa casa na casa que somos. E isso aprendi com o tempo e espero que ter uns anos para seguir desenhando a casa que sou. Uma certeza que tenho é que nessa morada há muito das minhas avós. É uma maneira viva de carregar o sertão comigo onde quer que eu vá, na presença das rezas, nas lembranças dos cantos das novenas, nas paisagens que circundam meus sonhos e em todas essas memórias dos afetos dos meus que seguem palpitando em meus poros.

Ser forte é também ter a coragem de reconhecer nossas fraquezas e as vezes eu esmoreço sim vozinha. Nessas horas de agonia, eu me apego na contemplação do entardecer ou no canto da alvorada, eu rezo o Santo anjo e a Ave Maria, revivo os mergulhos no açude contemplando os raios do Sol, sento a beira da água para ouvir de novo as marés encantadas, ouço os vagalumes brincando com as estrelas do céu e sinto o crepitar das fogueiras. E sinto que há uma mágica dos sentidos que floresce meu ânimo.

Eu te vejo vozinha como o anjo protetor de nossa família. Sei que já sofreu muito e conseguiu continuar na peleja. Não há família perfeita e temos nossos desafios que dói. Temos nossas passagens doloridas e vamos colecionando essas cicatrizes, que também chamo de cruzes, como essas que são fixadas nas estradas do sertão marcando a morte de alguém. Penso que morremos e renascemos várias vezes nesse percurso. E lembro do mandacaru e xique xique que renascem com as chuvas e tantas outras vegetações desse sertão que nos brinda com esse milagre das águas. É quando sinto emergir essa força que parece surgir das entranhas. Só quem nasce nessas terras conhece essa energia.

Vozinho me dizia da sua braveza e eu lembro de suas brigas e da forma como o amor estava na entonação brava de sua fala. Eu tento ensinar isso quando brigo com o Arthur, o caçula danado. Quem ama corrige. E sei que todas suas brigas foi e continua sendo pensando no bem de todos nós. Não sei se Peaches e Damian, meus netos e seus tataranetos terão a honra de conhecê-la, espero que sim. Assim como anseio contar a eles a sorte de ter uma Tataravó Maria tão preciosa. Nesse tempo que habitamos é um tesouro ter uma família que é retrato de acolhimento e ter uma avó que é referência de Amor. Sempre me senti acolhida em tua casa coração. É na minha casa coração que minha vozinha fará morada eterna.

Da Maria Ivone, a neta.
Cotia – SP, 28 de agosto de 2021
Escrevi do meu quarto, sentindo o cheiro e o canto da chuva, é manhã de inverno. Sábado. Lua Minguante.

Vozinha no alpendre de sua casa no sítio, em noite de Lua Cheia

quarta-feira, 5 de maio de 2021

O riso e o choro na corrida

03/05/2021, cheguei ao dentista às 15:40 da segunda-feira de outono. A primeira consulta da Isa, depois a minha. Às 16:40 Isa foi ao encontro do pai. Eu fiquei. Depois de 1:35 minutos com a boca escancarada o procedimento foi concluído (mesmo com a anestesia você sente incômodo, quem já fez canal sabe bem do que estou falando). E ainda terei outras etapas. Depois de agendar a próxima consulta e da despedida chamei o Uber que naquela hora ficou um preço mais salgado que o normal, mas eu precisava de casa, estava perto da hora dos remédios e o banho, a cama e o sono estavam no meu horizonte de sonhos naquele instante. Depois de longos 10 minutos o carro chegou.

O motorista atencioso nas confirmações do nome e destino e logo ingressou na conversa. Perguntou como eu estava, expliquei sobre o canal e o outro dente que latejava e disse que dor de dente é daquelas que nos faz endoidar e etcs. Ele sorriu do meu jeito de falar e ao mesmo tempo sua voz embargou ao responder:  ”obrigado por me fazer rir. Eu acabei de chorar muito.” Eu senti aquele nó na garganta ao ouvir o relato da cena e sua ação, que vou tentar resumir a seguir:

Ele é funcionário público e complementa sua renda fazendo Uber para junto com sua esposa conseguir pagar as contas, principalmente, o investimento na educação dos três filhos. Depois de encerrar seu expediente de trabalho e as vezes antes de iniciar ele faz o aplicativo.  Ao terminar uma de suas corridas depois do expediente, ele viu um pai recolhendo do lixo alimento para dar a sua família, mulher e dois filhos que estavam na lona improvisada embaixo do viaduto. Ele parou o carro, ficou observando a cena e viu o pai dando um pacote com resto de batata do MC para uma das crianças. Ele saiu do veículo foi até o local e conversou com eles, foi comprar alimentos com o dinheiro que tinha das corridas que fez nas últimas horas e, conforme ele disse: “não tem como descrever o olhar de gratidão daquela família, como não tem como não ficar arrasado em saber que tantas outras estão na mesma situação.” Ele disse que tinha entrado no veículo e voltou a dirigir aos prantos e quando conseguiu se acalmar aceitou a minha corrida.

Lágrimas quentes escorreram salgadas e nosso choro foi seguido de um silêncio comunhão. Voltamos a conversar já pelo meio da corrida e gargalhamos mais umas vezes ao falar das nossas próprias mazelas. Ao chegar ao meu destino, ele me parabenizou pelo humor e disse: “desculpe, você deve tá com uma dor danada e eu fazendo você chorar.” Eu respondi: Imagina, eu te agradeço tanto por essa partilha. Muito obrigada e lembre-se que o riso é um ato de resistência. E também um bálsamo para nossas dores.

A anestesia estava passando, a dor aumentando, tinha estrelas no céu e uma lua minguante enigmática. Senti um abraço do céu anestesiando minha alma com ternura.


Eu escolhi a foto do meu irmão Paulo para ilustrar essa postagem, porque ele é um desses personagens do riso da minha vida e que também tem um coração gigante. Esse texto está no meu Blog de memórias porque essa corrida ficou gravada no meu livro-coração.

domingo, 25 de abril de 2021

O domingo de Oz as Palmas

Hoje fui na Feira da Analice, o pastel com caldo de cana é tradição na manhã de domingo. Comprei também a goma pra fazer a tapioca, o coentro, o feijão branquinho e dois que trouxe para fazer remédio, a salsinha que não gosto muito e o famoso mastruz que mãe tanto insiste para eu fazer. “E bom para toda inflamação.” Quando estávamos retornando, a nossa frente estava o ônibus Taboão São Judas. Eu disse ao meu marido:  quantas vezes eu peguei esse ônibus cedo no domingo para ir almoçar em Tia Coca? Durantes muitos anos, ele respondeu. Fizemos esse trajeto em muitos domingos no ônibus que atualmente é mais conhecido pelo número da linha.

No ponto da Avenida Padre Vicente Melillo, perto da igreja onde casei, era o ponto de partida. As vezes chegávamos ao ponto e logo vinha o azul intermunicipal, outras vezes a espera era de 30 minutos ou mais.  A Bruna e o Henrique adoravam ir no banco alto e ficavam vagueando os olhares curiosos pelas ruas do itinerário do 213. Descíamos na praça do Taboão e de lá seguíamos a pé até o Jardim das Palmas onde a tia morava. Quando avistávamos a padaria da esquina a euforia tomava conta dos passos das crianças, virando à esquerda e logo a direita para subir a ladeira o nosso destino ficava cada vez mais perto. Chegávamos lá com sede depois da caminhada, as crianças desciam as escadas correndo para encontrar os primos.

O coro de vozes alegres ecoava pela casa. Minha mãe logo começava a ajudar a tia com a comida na cozinha, a louça na pia. As crianças brincavam na sala. Sempre tinha muita risada e um cardápio cheio de afeto. No quintal tinha varal com muitas roupas estendidas, nas camas algumas já secas para dobrar. A lida da tia e da mãe, que trabalhavam fora e cuidavam da casa e filhos não foi tarefa fácil. Eu olhava aquela montanha de roupas e tinha vontade de chorar as vezes. Ficava imaginando como a tia conseguia dar conta de tudo e sempre estava sorrindo, com sua presteza em alimentar todos. E posso garantir que sua nutrição foi e continua sendo muito além do alimento servido a mesa com esmero e carinho.

A tia sempre gostou de receber e sua alegria com nossa presença seguia conosco no retorno pra casa. O mesmo percurso de volta, a caminhada até o Largo do Taboão, a espera no ponto do ônibus Osasco Centro. Subíamos apressados, as crianças até dormiam encostadas em nosso ombro, exaustas do passeio. As vezes já era noite quando chegávamos a Osasco para tomar banho, dormir e começar a semana com a doce memória do encontro do domingo aquecendo os corações.

Crédito da imagem: site O Taboanense

Sertão 2024

Cheguei em São Paulo quando eu tinha 14 anos. Lembro até hoje do frio que senti e do espanto com o céu todo branco acinzentado. Demorei muit...